04 - A Epístola aos Romanos
Parte 4
“O mito do homem notável”
Texto: Romanos 4
Texto áureo: Romanos 4:13
Introdução (Rm 4:1 a 3)
No capítulo 3, o Paulo demonstrou que a justificação é apenas pela fé em Cristo Jesus, deixando claro que a fé suplanta a questão da circuncisão e da lei. Não que negue a lei, mas, segundo Paulo, a confirma, porque na visão de Paulo a lei aponta para a necessidade da fé. Restava, entretanto, uma questão que seria: qual o apoio que as Escrituras dão para esta tese? No capítulo 4, o apóstolo Paulo chama à tona este apoio; fala do próprio Abraão, deixando claro que a justificação de Abraão também foi resultado da sua fé. O apóstolo evoca o capítulo 15 do livro de Gênesis, onde Deus, diante da angústia de Abraão, que lamenta não ter um descendente, aponta-lhe as estrelas e a areia da praia, garantindo-lhe que a sua descendência teria tais dimensões. Abraão crê; e conforme o texto citado por Paulo, versículo 6: “isto lhe foi imputado para justiça”. Desta forma, Paulo tem a referência bíblica necessária para sustentar o seu argumento: Abraão, patriarca-mor, foi justificado não pelo conjunto de obras que tivesse realizado ou que viesse a realizar, mas por sua fé na palavra de Deus.
A importância dada a Abraão pelo judeu (Rm 4: 4 a 6) O povo judeu é descendente de Abraão, por meio de seu filho Isaque. Esta descendência é muito cara ao povo de Israel, não apenas por ter sido Abraão chefe de um clã que tornou-se uma grande nação de reconhecida importância na História, mas principalmente pelo que esta descendência significa em termos espirituais. Ser descendentes de Abraão é ser herdeiro de um pacto com Deus; é fazer parte de uma história cheia de significados e de uma importância crucial para o destino da humanidade. Daí, a figura de Abraão ser uma figura de proeminência inquestionável, inatacável e inalcançável. Baseado nisto mesmo é que Paulo chama Abraão por testemunha. Ao deixar claro que a justiça de Abraão não foi resultado de seu trabalho, ou mesmo e sua obediência à ordem de Deus quando este determinou-lhe que saísse de sua casa, de sua parentela, Paulo advoga que a justiça de Abraão é fruto de sua fé. Foi a sua fé que foi atribuída como justiça. E isto, sem dúvida alguma, deixa todos os adversários de Paulo numa situação bastante difícil. E Paulo chama uma outra testemunha, ainda: Davi, que declara que bem-aventurado é o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras, numa citação do Salmo 32, versículos 1 e 2. Aprendemos, então, com Paulo, que Deus declara justo o ser humano que crê na sua palavra. Isto não é fruto de suas obras, mas fruto da graça de Deus. E a maior prova disso é o próprio Abraão, patriarca dos patriarcas, pai da fé.
Sua vulnerabilidade humana (Rm 4:7 a 10) Ao citar Davi, declamando “bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos; bem-aventurado o homem a quem Deus jamais imputará pecado”, Paulo coloca Abraão na raça humana, deixando claro que o patriarca é um homem como qualquer outro: que precisava de justificação, que precisava de perdão para os seus pecados, que dependia única e exclusivamente da graça divina, como qualquer ser humano, de qualquer época, de qualquer nação. E Paulo faz isso para tornar ainda mais incisiva a importância da fé; não apenas falar da sua importância, mas, também, para falar da sua importância. Por quê? Porque havia entre os judeus a idéia de que a fé só tem efeito para os que, primeiro, obedecem a lei, ou, primeiro, celebram os pactos. Paulo quebra esta lógica ao ressaltar que Abraão creu, e isto lhe foi imputado por justiça quando ele ainda estava incircunciso, ou seja, antes da celebração de qualquer pacto. Isto, obviamente, dá à questão da fé uma amplitude transnacional, porque, se a fé foi possível a Abraão quando ainda incircunciso, não a nada que impeça que ela seja atribuída a qualquer humano, independente de estar ou não circuncidado, de ter ou não algum pacto prévio com Deus, de saber ou não previamente das demandas de Deus. Nesta fala de Paulo, está registrada a universalidade do chamado cristão, do chamado de Deus: a fé é uma possibilidade estendida a qualquer ser humano. É óbvio que, se isso traz aos gentios, como nós, esperança, traz aos judeus, humildade. Paulo deixa claro que Abraão não é apenas o pai dos judeus: Abraão é o grande símbolo do homem falível, pecador, a quem a possibilidade da fé é estendida pelo Todo Poderoso, mediante a Sua graça.
Embora pai da fé, pecou (Rm 4:11 a 14)
O apóstolo Paulo, nestes versículos, inverte a lógica judaica. A lógica judaica dizia que a fé, como já vimos, é subproduto do pacto, ou seja, só os que previamente celebravam um pacto com Deus, e a este pacto são obedientes, têm o benefício da fé. Paulo inverte isso. Paulo diz que é o contrário, que a fé é que gera o pacto; que primeiro Abraão creu, e, depois, foi circuncidado.
Isto significa que a circuncisão vem como um selo de que ele foi justificado, e não como um requisito para que ele seja justificado. Primeiro se crê, depois celebra-se o pacto. E isto é muito interessante porque o Paulo está trabalhando a partir do episódio em que, depois de ter perambulado pelo Egito e cometido transgressão, não só a transgressão de descido para o Egito sem a devida permissão de Deus, mas também a transgressão de ter entregue a sua esposa aos príncipes egípcios, e de ter se enriquecido às custas disso, Abraão volta para a terra de onde jamais deveria ter saído. E é ali que Deus marca um encontro com ele, o encontro descrito no capítulo 15 do livro de Gênesis. Portanto, Abraão, que está frente a frente com Deus, é um homem que vem de uma história recente de transgressões. E o que realmente leva-o a receber de Deus a declaração de justificado é a sua fé, a fé naquilo que Deus lhe disse com respeito ao que viria ser a sua descendência. A circuncisão vem depois. E Paulo deixa claro que a circuncisão só foi possível como pacto porque Abraão, primeiramente, creu na palavra de Deus. Dessa forma, advoga o apóstolo, Abraão é pai da circuncisão, como propagandeiam os judeus, mas não apenas da circuncisão: ele é pai de todos os que crêem, mesmo que não sejam circuncidados. Porque como advoga o apóstolo dos gentios, a fé é o princípio de tudo; a fé o alicerce para todos os pactos, e não o contrário. Portanto, seja o pacto da circuncisão, seja o pacto da lei, todos eles são posteriores à fé. E a justificação, portanto, a declaração de Deus de que determinado ser humano passa a ser considerado justo se sustenta em algo que acontece antes dos pactos. Mais do que isso: algo que, em acontecendo, dá lugar à possibilidade da celebração de pactos. E esse algo é a fé. Paulo está dizendo: “sem fé, não há pacto”. E aqui, fica subentendido que pacto sem fé é nulo, porque é pacto celebrado sobre nenhum alicerce. E a fé que dá significado aos pactos, e não o contrário. Desta forma, ser filho de Abraão prescinde dos pactos, prescinde da circuncisão ou da lei. Só não prescinde da fé.
O cuidado que devemos ter hoje com os mitos (Rm 4:15 a 18)
Essa questão do mito é uma questão basicamente universal. Todos os povos têm os seus mitos. Parece que a humanidade está sempre tentando evocar exemplos de superação, sempre tentando se estribar na possibilidade do super-homem, na possibilidade de, segundo suas próprias forças, triunfar sobre as suas fraquezas. Entretanto, o mito é uma falácia: tais super-homens não existem, e jamais existiram.
O triste da situação, o que a agrava, é que muitas vezes seres humanos que não foram mais do que carne e osso, seres falíveis, que dentro de suas parcas possibilidades foram agraciados por Deus, são transformados em mitos por seus descendentes. E foi isso que aconteceu com Abraão por parte dos judeus. O apóstolo Paulo insiste em recordar aos seus leitores a humanidade de Abraão, que ele não tornou-se o que se tornou por força própria; pelo contrário, foi única e exclusivamente pela fé. E Paulo agrega: tem de ser pela fé, porque, de outra forma, seria uma recompensa, uma recompensa pelo cumprimento da lei, ou pela celebração de um pacto. E mais ainda: a lei traz a divisão entre os homens, porque funcionaria como uma seleção, separando os homens entre os que são capazes de cumprir a lei, e os que não são; ou melhor, entre os que se julgam capazes, uma vez que ninguém o é. E isso traria uma situação ainda mais delicada, porque estabeleceria um relacionamento baseado no preconceito, na ira, na inimizade entre aqueles que, embora incapazes, se julgam capazes de cumprir a lei e celebrar os pactos, e aqueles que simplesmente admitem não só a ignorância dos pactos, como de celebrá-los e obedecer-lhes as demandas. Paulo diz: tem de ser pela fé, porque a fé iguala todos os homens, e a fé se sustenta apenas e tão somente na graça de Deus. “O Abraão mito não existe”, diz Paulo, “o Abraão que existe é o Abraão da fé, aquele que esperando contra a esperança creu; tornou-se o que tornou-se porque creu na palavra de Deus, mesmo quando a palavra de Deus disse o que aparentemente era impossível, de que um homem velho e uma mulher igualmente idosa teriam um filho; de que um homem sem filho seria pai de nações, de muitas nações.”
A queda dos homens de Deus (Rm 4:19-22) O apóstolo Paulo sustenta que o que manteve Abraão foi a sua fé. Em nenhum momento, ele duvidou. As condições eram-lhe contrárias; entretanto, ele foi vitorioso por causa da sua convicção, a convicção do poder de Deus para cumprir o que prometera. Ao declarar isto, o escritor da carta aos romanos dá-nos também a receita para mantermo-nos firmes na jornada cristã. E a receita é simples: fé no poder de Deus, fé na sua promessa. E a idéia básica é de que, sem essa fé, não há força que nos mantenha no caminho da salvação. E nós mesmos, não há poder para lidar com a contradição contida na proposta cristã, onde pecadores são desafiados a serem justos, e injustos são desafiados a serem santos.
Paulo exalta a fé, não apenas como caminho para a justificação, que é uma declaração de Deus a respeito do ser humano, mas também como meio de manutenção; isto é, sem fé é impossível manter-se firme, porque a fé é que dá a Deus a condição de sustentar-nos. Ao dizer isso, Paulo também denuncia o motivo de nosso fracassos, e o motivo é a falta de fé. Mas falta de fé é mais do que a incapacidade de acreditar: é a pretensão de fazer ou de tentar lograr êxito às custas da própria força. Parece que é 3
aqui que todos os que caíram, tropeçaram. Por algum motivo, em algum momento, no meio do caminho, ou já perto do fim, entenderam que podiam por si sós; de tanto nadarem, julgaram-se peixes, esquecendo-se de que o que os mantinha vivos em meio a um ambiente inóspito era a bolha de ar que a graça de Deus lhes propiciava. Paulo exalta a questão da fé, agora não mais como um ponto de partida, mas como um segredo para existência.
Conclusão (Rm 4:23 a 25) O Paulo nos ensina que a fé de Abraão, que produziu um tipo de fé que ele viveu, está na base, não só da história de Abraão, mas na história de todos os homens. O autor da carta aos romanos revela-nos que Deus estabeleceu a fé como portal para a entrada no Reino, pensando na universalidade do seu chamado. Nem todos os povos foram alvos da revelação divina, no que tange à Criação, à Queda. Nem todos os povos receberam a revelação da existência de Deus, ou foram chamados a celebrar pactos com Ele. De fato, somente o povo de Israel desfrutou deste privilégio, até porque cabe, ou coube ao povo de Israel, um papel único na História: o de trazer à História o filho de Deus. Daí porque terem recebido tal nível de revelação. Aos demais povos este privilégio não foi oferecido; porém, graças ao fato de que, por determinação divina, a salvação só pode ser obtida pela graça, mediante a fé, todos os homens, de todos os povos, podem alcançá-la. O apóstolo Paulo diz que isto é assim, não apenas para o bem de Abraão ou de seu povo, mas para o bem de todos, todos os que tiverem fé naquele que ressuscitou dentre os mortos, em Jesus, nosso Senhor. Todos os que tiverem fé no fato de que Jesus foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por causa da nossa justificação, ou seja, todos os que acreditarem que Jesus, ao morrer, satisfez a justiça de Deus, pagando pelo nosso crime, e que a sua ressurreição é prova inconteste de que o Seu sacrifício foi aceito, e, portanto todos os que nEle crerem serão declarados justos.
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2007 Ariovaldo Ramos