Mundo, Igreja e Reino de Deus - Parte 5
Vinho Novo, Odres Novos - Guia de Estudo 05
Este Guia de Estudo refere-se ao quinto sermão da série Vinho Novo, Odres Novos, pregado pelo Pr. Ed René Kivitz em 18 de abril de 2010 e disponível em áudio para download no site da Ibab (ibab.com.br). Ele foi elaborado para facilitar a discussão em Pequenos Grupos.
Mundo, Igreja e Reino de Deus
Pai nosso, que estás nos céus! Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia. Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém.
[Mateus 6.9-13]
Um lado
A maioria das pessoas organiza sua visão geral do Evangelho a partir da combinação de três palavras: mundo, igreja e céu. O mundo é considerado imundo, pois está em trevas e pertence ao Diabo: “o mundo jaz no Maligno” (1João 5.19), que é “o deus deste século” (2Coríntios 4.4). A igreja é o universo de pessoas que saiu do mundo (Atos 2.40) e se afastou das “coisas do mundo”, pois pensa apenas nas “coisas do alto” (Colossenses 3.1). O céu é a esperança de todos os que são a igreja, e representa a retomada do paraíso perdido e o lugar da plenitude da salvação (Apocalipse 21). O mundo é um lugar para onde a igreja vai muito contrariada. É o espaço profano ou secular, que não tem nada a ver com Deus. Estar no mundo é um mal necessário, encarado como um parêntesis ou um acidente, uma situação provisória, até que sejamos definitivamente libertos do mundo e recebidos no céu após a morte.
Essa compreensão do evangelho “mundo-igreja-céu” resulta em uma espiritualidade escapista e individualista. A vida passa a ser compreendida como um hiato entre o Éden e a Nova Jerusalém, o paraíso e o céu, e, portanto, sem valor em si, visto que o que importa mesmo é o futuro pós morte, quando estaremos finalmente salvos deste mundo tenebroso. O que acontece ao redor não importa, exceto quando nos afeta pessoalmente, e, nesse caso, clamamos a Deus que nos alivie o sofrimento e nos conceda conforto e prosperidade enquanto esperamos o céu. Já que esse mundo será destruído e acabará em chamas no dia do juízo final, cada um cuida de si e se ocupa em garantir seu lugar no céu. Talvez seja essa uma explicação para o descaso do movimento cristão evangélico em relação a temas como arte e cultura, ciência e tecnologia, política e cidadania, economia e desenvolvimento social. Essas coisas não se encaixam no triângulo “mundo-igreja-céu”, ou pior, se encaixam na parte “mundo” e, portanto, dizem respeito ao que é efêmero e será destruído por Deus. Não duvido que muitos evangélicos imaginem as partituras de Mozart, os gols do Garrincha, as obras de Oscar Niemayer e as poesias de Fernando Pessoa queimando no inferno. Para essas pessoas, Jesus veio salvar as almas perdidas, e qualquer preocupação com outra coisa que não seja a conversão de indivíduos implica uma distorção do verdadeiro evangelho.
Outro lado
Existe uma outra maneira de organizar uma visão geral do Evangelho. Basta substituir uma palavra no triângulo tradicional. Nesse caso, em vez da combinação “mundo-igreja-céu”, teremos a combinação proposta por Jesus em sua conhecida oração do Pai Nosso: “mundo-igreja-reino de Deus”.
Jesus não compreendia a realidade fracionada em blocos de tempo e espaços estanques: o mundo aqui, a igreja ali e o céu acolá. Para Jesus, a realidade era única e as dimensões estavam misturadas e interpenetradas. O mundo, a igreja e o reino de Deus convivem aqui e agora. Na verdade, para Jesus, o mundo é o palco para a manifestação do reino de Deus – “venha o teu reino” (Mateus 6.10) -, e a igreja é a comunidade responsável por protagonizar os sinais desse reino – “vocês são sal da terra e luz do mundo” (Mateus 5.13-16).
Na Bíblia, a palavra “mundo”, pode ser entendida pelo menos de três maneiras. Mundo pode significar o universo natural, a natureza criada por Deus: “do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam” (Salmo 24.1). Pode também significar o sistema organizado contra os valores e interesses do reino de Deus; uma cultura, uma ideologia, uma estrutura social, política e econômica, por exemplo. É por isso que a Bíblia diz que “não devemos nos deixar moldar/formatar pelo mundo” (Romanos 12.1,2) e também “não devemos amar o mundo” (1João 2.15-17), pois “o mundo nos odeia e nos persegue” (João 15.18). Finalmente, mundo pode significar a humanidade, e provavelmente foi nesse sentido que Jesus amou o mundo e veio, não para condenar, mas para salvar o mundo (João 3.16-18).
A igreja é, portanto, a parte do “mundo humanidade” que vive o “mundo natureza”, mas não pertence ao “mundo sistema” (João 15.19; 17.15), pois acolheu o reino de Deus e se comprometeu em fazer a vontade de Deus “assim na terra como no céu”. O mundo, nesse caso, deixa de ser algo condenado à perdição eterna, mas é alvo do propósito redentor de Deus, e a igreja supera seu desprezo pelo mundo quando assume sua missão de ser testemunha de Jesus “até os confins da terra” (Atos 1.8), isto é, representar o direito e a autoridade de Jesus sobre todas coisas, não somente neste século (aqui e agora), como também no vindouro (ali e além, quando a redenção estiver consumada). O propósito de Deus é que Jesus seja Senhor de fato e de direito sobre todas as coisas, no céu, na terra e debaixo e da terra. Para cumprir seu propósito de fazer Jesus cabeça sobre todas as coisas, Deus o fez cabeça da igreja (Efésios 1.20-22). Por esta razão, a igreja é presença de Cristo na terra e sinal do reino de Deus no mundo.
O Reino e a Igreja
Alguns teólogos confundem o reino com a igreja. Mas, na verdade, o reino de Deus é maior que a igreja. A igreja não é o reino, é a comunidade do reino. É na igreja, pelo menos em tese, que o reino se manifesta em maior densidade. Mas o propósito de Deus é que o reino de Deus não esteja restrito à igreja, mas se manifeste em toda a terra e sobre todas as dimensões da vida no mundo.
A oração do Pai Nosso pode ser dividida em seis pedidos: três verticais e três horizontais. Os verticais são: “santificado seja o teu nome; venha o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. Os horizontais são “o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa as nossas dívidas; não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”.
Os pedidos desta oração não representam favores de Deus exclusivos para a igreja, mas para toda a humanidade. A igreja que ora o Pai Nosso, não ora apenas por si mesma, mas pelo mundo todo e por todos os habitantes da terra. O pão, o perdão e a vitória sobre o mal são aspectos da utopia universal do reino de Deus.
O pão nosso
É muito difícil acreditar que o pedido pelo pão na oração do Pai Nosso seja uma referência ao alimento para o corpo. Há pelo menos três bons motivos para essa desconfiança. O primeiro é que Jesus advertiu seus discípulos a que não vivessem preocupados com o que comer, beber, ou vestir, pois Deus, o Pai Celestial, cuida das flores e dos passarinhos, e muito mais dos seus filhos (Mateus 6.19-34). O segundo é que Jesus advertiu as multidões que buscassem o pão da vida, e não o pão que alimenta o corpo (João 6). Finalmente, devemos lembrar a absoluta desconfiança de Jesus a respeito das coisas materiais como fonte de satisfação e realização humana.
Convenhamos, há muita gente bem alimentada no corpo e com fome na alma. O oposto é verdadeiro: há muita gente mal alimentada no corpo e absolutamente suprida na alma: “nem só de pão vive o homem” (Mateus 4.1-11).
Não creio que Jesus seria simplista a ponto de reduzir a súplica pelo pão ao alimento físico. Prefiro compreender o pedido pelo pão como referência a tudo quanto é necessário à vida humana com dignidade, o que inclui o pão como alimento para o corpo, mas não apenas isso. Também prefiro sublinhar a palavra “nosso”, em detrimento da palavra “pão”. O que Jesus está ensinando com essa oração é que devemos pedir a Deus um mundo em que o individualismo, o egocentrismo e a competição tenham sido superados pela solidariedade, a compaixão e a cooperação. A vida humana é protegida e dignificada, não quando alguns poucos prosperam e têm abundância, mas quando cada ser humano enxerga o outro ser humano como uma dimensão de si mesmo – “amar ao próximo como a si mesmo; amar ao próximo com o amor de Cristo” (Marcos 12.28-31; João 13.34).
Jesus não está pedindo pão de trigo, está pedindo plenitude de vida, somente possível na comunhão fraterna do reino de Deus. O pedido pelo pão nosso é uma profecia da igreja como comunidade solidária, como igreja para o mundo, em vez de uma igreja contra o mundo. Em síntese, uma igreja que vive sob o imperativo do reino de Deus. Uma igreja que vive no favor do “mundo natureza”, contra o “mundo sistema”, a favor do “mundo humanidade”.
O perdão nosso
O perdão é a resposta de Deus para pessoas que contrairam dívidas impagáveis. Diante de dívidas impagáveis há apenas duas opções: o perdão ou a destruição do devedor, o que implica a destruição do relacionamento entre credor e devedor. O perdão é a recusa em colocar uma dívida acima de uma pessoa. Uma pessoa vale sempre mais do que qualquer dívida que possua, inclusive, e principalmente, suas dívidas impagáveis.
O perdão somente é possível quando o paradigma “mérito-demérito” é superado, e as relações deixam de ser na base “credor-devedor” e passam a ser na base da graça de Deus: abençoar mesmo quem não merece, até porque em relação a Deus, ninguém é merecedor de seu favor.
O perdão aos que nos têm ofendido ou nos devem alguma coisa impagável é uma extensão da graça de Deus sobre nós. Uma vez abençoados por Deus mesmo quando não éramos merecedores do seu favor, abençoamos o nosso próximo independentemente dos seus méritos e deméritos. A graça de Deus sempre transborda aqueles que são alcançados por ela. O que não transborda não é graça, e porque não é graça, não oportuniza o perdão de Deus.
Mais uma vez, o pedido pelo perdão é uma profecia da igreja como comunidade solidária, como igreja para o mundo, em vez de uma igreja contra o mundo. A igreja como ambiente da graça e da superação das relações de “mérito-demérito” e do paradigma “credor-devedor” se transforma em comunidade da compaixão e da fraternidade. E, nesse sentido, é sinal do reino de Deus.
A vitória nossa
O pedido “não nos deixes cair em tentação” é geralmente interpretado como “não nos deixes cair quando estivermos sendo tentados”. Cair em tentação seria sinônimo de fracassar no momento da tentação. Mas podemos também compreender que Jesus está nos ensinando a pedir a Deus que não nos deixe entrar em tentação, isto é, que nos mantenha distantes do momento, ambiente ou ocasião em que a tentação acontece. Ele não está pedindo que sejamos vitoriosos quando tentados, mas que sequer sejamos tentados.
Uma boa razão para essa compreensão é a segunda partre do pedido: mas livra-nos do mal. Novamente, precisamos reconsiderar as interpretações mais comuns, que identificam esse mal com o Maligno, o tentador. Mas Tiago diz que “somos tentados pelos nossos próprios desejos maus”.
Quando alguém for tentado, jamais deverá dizer: “Estou sendo tentado por Deus”. Pois Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Cada um, porém, é tentado pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e seduzido. Então esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ter se consumado, gera a morte.
[Tiago 1.13-15]
A tentação não é necessariamente uma transação entre a pessoas que está enfrentando a tentação e o Diabo, mas principalmente uma luta que acontece no interior de cada pessoa, quando a maldade que há em cada pessoa dá origem à tentação que empurra na direção do pecado. Por essa razão Jesus equivale a expressão “não entrar em tentação” com “ser liberto do mal”. Em outras palavras, estaremos tão longe da tentação quanto mais puros forem nossos corações. O terceiro pedido horizontal de Jesus é pela pureza interior.
Novamente estamos diante de uma comunidade solidária e cheia de compaixão. O mesmo Tiago nos esclarece que “as guerras e conflitos entre nós” se explicam pela maldade dos nossos corações. Porque somos individualistas e egocêntricos, isto é, buscamos apenas nossos próprios interesses, ferimos e usamos as pessoas ao nosso redor, razão pela qual precisamos tanto de perdão e reconciliação.
Os três pedidos horizontais têm sua lógica amarrada pela súplica pelo reino de Deus. Um coração puro (que não está em tentação, pois é cheio de bondade e não de maldade) viverá mediante o paradigma da graça-gratuidade (perdão compartilhado com o próximo), e buscará sempre o bem coletivo (o pão nosso). Na dinâmica da comunidade da solidariedade e da compaixão haverá sempre a busca pela justiça e pela paz. E aí estará o reino de Deus, isto é, a vontade de Deus se realizando na terra como no céu.
© 2010 Ed René Kivitz